Júlio de Matos Photography

REFLEXÃO [back]

FADING HUTONGS (2005 - 2008)


FADING HUTONGS

Subitamente, sem qualquer sinal de aviso, penetrei numa outra dimensão do espaço e do tempo. Já não me encontrava naquela Beijing que tinha conhecido durante quase uma semana. As grandes avenidas apagaram--se, as memórias de um passado Imperial não estavam aqui. Na vez dos arranha-céus de vidro espelhado, via casas de piso térreo. 10 minutos antes atravessava largas avenidas com centenas de pessoas anónimas, e naquele local observava uma aldeia de vizinhos, com o seu mercado de rua, vendendo e comprando galinhas, peixes, legumes, frutas. Como ocidental, ainda me arrepio ao pensar nesta sensação de viajar no tempo, ao virar da esquina. Ainda era uma Beijing não encantada com o estrangeiro e com o progresso, ainda ciosa do seu quotidiano de aldeia e banal, cada vez mais raro nos nossos dias. Tive a nítida sensação que estava a assistir ao fim de uma era que inexplicavelmente tinha sobrevivido até aos nossos dias. Que aquele tipo de local era incompatível com as outras experiências de modernidade e progresso que tinha presenciado em Beijing. Que aquele local, com a sua peculiar forma de organização física e social estava ameaçado. Foi assim o meu primeiro contacto em Agosto de 2005, com os Hutongs de Beijing na parte Sul (sudeste).

Os Hutongs, as ruas tradicionais de Beijing, e as Siheyuan, as casas de pàtio quadrado, que nos remontam à visão urbanística de Kublai Khan, contemporâneo de Marco Polo, estão a desaparecer muito rapidamente. Beijing està a atravessar uma fase impar de ràpida transformação urbana sobretudo devido às pressões urbanísticas causadas pelo acelerado desenvolvimento económico, e pela aproximação dos Jogos Olímpicos de 2008. Esta paisagem muito especial, e esta única e ancestral forma de viver estão a apagar-se rapidamente para sempre. Como arquitecto e como fotógrafo tornou-se-me urgente e imperativa a necessidade de contribuir para contrariar de uma forma pessoal e subjectiva, uma perda na memória colectiva. De visualmente antecipar o passado de um presente ameaçado de uma realidade urbana não suficientemente valorizada no presente. Este fenómeno não é novo e tem sido sentido das mais diversas formas à escala global.

Ao regressar 5 meses depois, o mercado jà lá não estava. A demolição avançava ràpida. Restavam algumas ruas quase desertas e alguns habitantes. Regressei ainda mais duas vezes, em Setembro de 2006 e mais recentemente em Fevereiro de 2008. Calcorreei e fotografei Beijing e os Hutongs de norte a sul, de este a oeste. Aqueles que sobreviveram, são hoje ilhas cercadas e camuflados pelas casas novas nas margens do oceano das largas avenidas. Onde antes, durante séculos habitaram as classes mais prestigiadas em grandes casas uni-familiares, hoje vivem em condições dignas mas difíceis os normais habitantes de Beijing. Pude presenciar perto do Lama Temple a recuperação de vários Siheyuan, e novamente uma alteração no panorama social dos habitantes dos Hutongs.

Os tempos mudaram. A fisionomia dos jovens reflecte a sua urbanidade contemporânea, e o seu potencial poder de compra projecta-os para longe dos Hutongs, para a periferia, onde encontram residências, mais compatíveis com as suas ambições de futuro.

A família May vivia num Siheyuan. Era sem luxos, o mais agradàvel e harmonioso em que eu jà tinha entrado. Aceitaram com cortesia serem fotografados. Recentemente por razões de partilhas tiveram que o vender e mudar para um apartamento numa torre. O pai jà não joga xadrez na rua com os seus vizinhos e a mãe só contacta as antigas amigas num Chat na internet.

Apesar da modernidade aparente, esta família como todos os que foram apanhados nesta “dobra do tempo”, sofrem com a mudança. Instalou-se um vazio interior que vai levar tempo a cicatrizar.

Júlio de Matos, 2006