Júlio de Matos Photography

REFLECTION [back]

MANIKARNIKA GHAT- PORTA DO PARAÍSO (2003)


PORTA DO PARAÍSO

Não foi saudosismo de feitos antigos portugueses o que me arrastou em 1992 para a grande Índia. Nunca fui a Calicut, ainda não estive em Goa, andei perto de Damão e, quando percorri o Gujarat, pude verificar o esquecimento a que Portugal votou aquilo que foi a sua maior praça-forte do oceano Índico, de nome Diu. O Índico, desde então, tem sido o meu centro de gravidade. Já desfrutei o nascer do sol em terra de diversas culturas do Índico. A partir de África, em Mombaça, no Quénia, e também na Tanzânia. Na Ásia, em Galle e em Kandy, na ilha em forma de pérola do Ceilão, em Mianmar, em Angkor, em Ayuthaya no Reino da Tailândia, e, claro, na Índia, em Trivandrun, em Tamil Nadu, no Sikkim, em Kerala, em Orissa, em Wankaner...

Mas, de todas as paragens por onde deambulei, Vàrànasi ocupa um lugar à parte no meu coração. Talvez por também ser arquitecto, tenho tido um melhor relacionamento com culturas urbanas do que com nómadas ou rurais, e aí encontrei uma cidade, habitada sem descontinuidades há mais de 5000 anos, que passou por todas as vicissitudes: invasões, incêndios, inundações, pragas, etc., mas que nunca foi abandonada. Outras cidades há, historicamente ainda mais antigas, mas que foram temporariamente abandonadas e estiveram sem vida. Se há cidades sagradas, Vàrànasi é uma delas.

Visitei-a a primeira vez em Agosto de 1992, percorri os ghats ao amanhecer, o Ganges estava alto, o sol dourado pela manhãzinha, e, sem aviso prévio, desemboquei em Manikarnika Ghat. Os sons, os cheiros, as cores, a agitação, a música, o fumo, os cadàveres, os rituais, o tabu, provocaram em mim uma emoção e um choque cultural indelével que ficou pairando durante mais de uma década.

Retornei com sentidos despertos e emoções espectantes. Não quis dirigir-me logo ao centro do vortex, resisti e afastei-me voluntariamente. Ao fim da tarde do segundo dia dirigi-me a Manikarnika Ghat. Primeiro percorri as artérias de Vàrànasi, regurgitantes da luta diària pela sobrevivência e pela vida, atravessei alguns vasos capilares mais solitàrios e desembarquei noutro mundo com outras regras e outras formas de estar. Tinha chegado à estação de passagem para o Universo. Tudo existe em função da lógica da partida para uma viagem sem local e data de retorno. No fim tudo o que fica são apenas as memórias.

A madeira é trabalhada extenuadamente, armazenada, partida, pesada e transportada aos ombros até ao seu destino. É o combustível para essa grande viagem. Após um último banho de purificação na mãe Ganges, assistido e apoiado pelos mais próximos, os ainda restos mortais vão ser cremados numa pira de madeira. Não é necessariamente uma partida solitària. Pode haver simultaneamente muitas partidas em Manikarnika Ghat. O branco marca o luto, o filho mais velho, como sinal de dor, rapa o crânio e familiares e amigos acompanham o corpo sem vida, nesta sua partida.

Silenciosamente, e sem prantos, assistem à fusão da vida com o Universo. Lentamente, mas com eficàcia, aquela pessoa transforma-se no Ar que respiramos, nas poeiras que nos acompanham sempre. As chamas elevam-se, o calor quase tudo consome, e no fim o corpo, purificado pelo Fogo, repousa momentaneamente na Terra sob a forma, sobretudo, de cinzas. Finalmente, o Ganges acolhe no seu seio as cinzas naquilo que é a última etapa. Assim, aquela pessoa dissolveu-se também na Água, neste rio sagrado, mãe da vida. Diante dos nossos olhos acontece a fusão da vida com o Ar e a Água, elementos que não conhecem limites, fontes eternas da vida, portas do eterno recomeço.

Apresento este trabalho propositadamente sem guião nem grandes legendas, de forma a não o reduzir a um roteiro duma viagem qualquer, porque disso se não trata. Nos textos deste livro encontram-se as chaves que permitirão uma melhor leitura das imagens reproduzidas. “Porta do Paraíso – Manikarnika Ghat” pretende ser, sobretudo, um olhar perscrutador de sinais, nesta antecâmara da grande viagem, numa cultura sem paralelo, simultaneamente próxima e distante. O afastamento temporal e espacial é um factor determinante na lucidez dos julgamentos. Distanciamo-nos para melhor nos podermos ver e, quem sabe, atingir por curtos instantes uma profundidade de campo que nos torne nítido, mas em planos diferentes, aquilo que é conjuntural e aquilo que é universal.

Nascer, viver, morrer, três verbos comuns a toda a humanidade, mas muitas vezes com significados bem distintos. Nasci e vivo numa cultura que cada vez mais se desumaniza ao recusar aceitar o envelhecimento e a existência da morte. Vivemos com o sentido de que somos eternos e subitamente somos surpreendidos pelo fim. Vivemos pensando que envelhecer não faz parte do ciclo da vida. Que quem não toma o elixir da eterna juventude é um condenado. Porque deixàmos de acreditar... Acreditar em algo mais, para além de nós.

Júlio de Matos
Porto, Junho 2003


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